Baró-cruz by Ricardo Resende

 
Em um texto dos mais simples e apaixonados, onde trata a linguagem fotográfica como um dos fenômenos transformadores da humanidade civilizada e em que pauta a cultura da imagem na sociedade contemporânea, nos diz Susan Sontag: “O inventário teve início em 1839, e, desde então, praticamente tudo foi fotografo, ou pelos menos assim parece… Constituiem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver. Por fim, o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça – como uma antologia de imagens… Significa pôr a si mesmo em determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento – e, portanto, ao poder… Imagens fotografadas não parecem manifestações a respeito do mundo, mas sim pedaços dele, miniaturas da realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir” (‘Sobre Fotografia’, 1977).

A linguagem fotográfica em outras palavras, também pode funcionar como um instrumento arqueológico da história desta mesma humanidade. Percebe-se hoje nos processos criativos artísticos os mais variados procedimentos de catalogação do cotidiano. Alguns colecionam objetos encontrados, outros recortes de jornais, uns mapeiam casas abandonadas e outros num gesto mais radical, as suas próprias vidas no dia a dia, em seus percursos pelas cidades. Como que inconformados com o estado dilacerante das coisas no cotidiano.

Estes artistas acabam por construir um pequeno museu particular ao carregarem uma visão íntima, particular de seu universo.

Lina Kim, artista brasileira atualmente radicada em Berlim, de maneira muito poética mas sem deixar de lado o forte sentido político que suas fotografias carregam, contribui para este tipo de catalogação, ao registrar de forma quase trivial um dos marcos da história do Século XX – a falência, talvez, da nossa última e grande utopia, que veio abaixo definitivamente com a queda do muro de Berlim, em 1989.

Momento este que coloca um término – ou ao menos uma trêgua – em uma guerra ideológica iniciada nos anos cinquenta, e que retoma nos dias atuais nesta mesma região do continente europeu, que torna-se palco do início de uma nova batalha. Nos mesmos moldes daquela, que ainda ecoa sobre os seus destroços, aqui registrados pela artista.

Lina soube captar de forma contundente, em suas várias idas desde 2003 a esta região da cidade alemã, a melancolia que restou nos interiores dos edifícios que abrigaram o poder, do que outrora foi Berlim Oriental. O seu trabalho, depois de quatro anos de pesquisa, torna-se portanto ainda mais atual diante dos caminhos políticos que se delineam na Europa no presente momento.

São fotos que expressam a contemplação da artista diante da “beleza” do abandono ideológico e material, percebidos nas cores que restam, observados em salas vazias, desertas e destruídas. São como orgãos de um corpo pesado, inerte, que podem ser captados viceralmente, como entranhas em um processo de decomposição.

As fotos aqui mostradas, metáforas da vida cotidiana diante da fugacidade do tempo, revelam em seu silêncio sepulcral a passagem dos individuos que estiveram por aqueles espaços. A memória do lugar é sugerida pelo desgaste do tempo, revelado em suas paredes, pelo chão, nos restos materiais, ou simplesmente no visível acúmulo de pó.

As imagens revelam sempre três paredes – duas laterais paralelas que convergem e restringem o olhar do espectador para a distante parede ao fundo. Trata-se sempre de um olhar fotográfico em perspectiva, com a artista em uma posição propositalmente estática e contemplativa diante da imagem a ser revelada. Presença forte e autoritária da sua objetiva registrando de maneira ampla, já que sempre de um mesmo ângulo, a beleza destes espaços no abandono, ja esquecidos pela história.

É neste intervalo prospectivo, entre o observador e a foto e seu fundo, que reside a alusão ao vazio, percebido nas imagens reveladas. Comentar o nada e o vazio soa óbvio diante da potência destas fotografias. Mas parecem ser estas as novas palavras de ordem para melhor expressar a arte contemporânea atualmente.

Essas são imagens nostálgicas e angustiantes. A luz natural, que entra pelas janelas e frestas ou é apenas sutilmente sugerida nas paredes laterais, nos consola e intimida.

Agumas das imagens escolhidas para esta exposição são de espaços com suas saídas de fuga obstruídas, outras são de longos e intermináveis corredores. Mas são alquelas com suas janelas enquadradas ao fundo, como se estivessem nos obrigando a olhar para fora, que parecem funcionar como uma passagem de escape no formato de uma grande tela cinematografica – capazes de transportar o observador para um mundo diverso do que se vê internamente, pleno de luz em contraste às sombras daquele passado.